|

WikiLeaks: Por entre elementos vazados






Brasilianista americano cruza a estridência do WikiLeaks ao analisar as relações Brasil-EUA.

Carolina Rossetti.

A leva de 250 mil documentos confidenciais vazados pelo site WikiLeaks revelou intimidades da diplomacia americana, disseminando um misto de constrangimento e preocupação em Washington. Particularmente no gabinete da secretária de Estado, Hillary Clinton, que, segundo tais despachos, mandou investigar funcionários das Nações Unidas, inclusive o secretário-geral Ban Ki Moon. Nesse mar de informações, foi possível pescar avaliações da saúde mental da presidente argentina Cristina Kirchner, alertas sobre um tumor maligno do boliviano Evo Morales e criativas análises sobre como Nicolas Sarkozy usa sua bela Carla Bruni para angariar popularidade no Brasil. "Os documentos mostram que tem muita gente falando sobre o que não deve, para quem não pode", pondera o cientista político americano Riordan Roett.

Especialista em América Latina e autor de The New Brazil, lançado neste ano pela Brookings Institution Press, Roett minimiza o comentário (também vazado) de Clifford Sobel, ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil, de que o País seria "antiamericano". Roett não vê azedume anti-Washington na política externa brasileira, mas sugere que simplesmente houve mudança na balança de poder que media as relações entre os dois países. Brasilianista da Escola de Estudos Internacionais da Johns Hopkins University, em Washington, Roett desenvolve nesta entrevista a ideia de como o Brasil foi deixando para trás a posição de obediência silenciosa em relação aos EUA para assumir o próprio peso nas negociações internacionais. "Europa e China já entenderam isso. Mas os EUA ainda não percebem que o Brasil não é mais ator periférico, mas global", diz no mesmo dia em que circulou o nome do ex-embaixador do Brasil em Washington, Antonio Patriota, para a pasta das Relações Exteriores. E como será o relacionamento Obama-Dilma? "Uma continuidade", prevê Roett, calculando porém que Dilma não será tão afeita quanto Lula aos holofotes das cúpulas presidenciais.

Em um dos documentos vazados pelo WikiLeaks, o ex-embaixador americano Clifford Sobel fala de ‘antiamericanismo’ na política externa brasileira. Já o chanceler Celso Amorim disse que o Itamaraty sempre foi ‘considerado antiamericano’. Tais afirmações podem impactar os laços entre Brasil e EUA?
O ex-embaixador Clifford Sobel foi uma indicação política para o cargo, não sabia falar português, ficou no Brasil dois anos e não conheceu o País. Tenho vindo ao Brasil desde 1962 e desde então me deparo com antiamericanismos, seja em nível pessoal ou ideológico, mas isso não chega a ser uma grande ocorrência na política externa brasileira. Apenas que os EUA são hoje menos importantes para o Brasil, que persegue uma diplomacia Sul-Sul - compromisso reforçado na sexta-feira pelo Itamaraty com o reconhecimento do Estado palestino. Os EUA ainda não entendem que o Brasil é um ator global cada vez mais forte e não vai mais seguir a liderança americana da maneira que fazia nos governos de Getúlio Vargas (1930-1945) ou de Castello Branco (1964-1967). Lá atrás havia uma relação assimétrica. Esses dias passaram e o meu país deve entender que o mundo está diferente. Estamos em declínio, enquanto o Brasil, ao lado de Índia e China, está ascendendo. China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil, seguido da Argentina, e só então vêm os EUA. Washington terá que se adaptar.

O seu livro China’s Expansion into the Western Hemisphere trata justamente do crescente interesse chinês pela América Latina. Essa inflexão também gera tensões com os EUA?
A relação bilateral China-EUA é a mais importante do século 21, mas é também muito difícil e complicada em certos momentos. Os chineses têm sido cautelosos ao lidar com o triângulo EUA-Brasil-China. Pelo que percebo, não querem, de forma alguma, que sua relação comercial e diplomática com o Brasil tenha nenhum impacto na relação com os EUA. Se um dia tiverem que fazer uma escolha, certamente optarão pelo elo com os americanos. A China praticamente nos sustenta, além de deter a maior parte das ações do tesouro americano. Além disso, os EUA precisam desesperadamente da China para lidar com o Irã e a Coreia do Norte. Não temos outra escolha senão jogar o jogo deles.

Na sua avaliação, esses documentos revelaram algo inédito sobre o Brasil?
Pelo que vi, as revelações mais sérias do WikiLeaks referem-se ao Afeganistão, à Rússia e à França. Os comentários em relação ao Brasil são menores e não creio que haja muito a ser revelado. Mas existe uma preocupação sobre relações mais amistosas entre o Brasil e a França, no que foi chamado de um "caso de amor" pelo embaixador americano em Paris. A França persegue uma estratégia com o Brasil diferente daquela dos EUA, pois combina diplomacia com relações comerciais. As visitas de Sarkozy ao Brasil foram entrelaçadas com negociações de compra de aviões. E o Brasil é visto como um país muito mais importante pela Europa e China do que é pelos EUA.

Com a saída de Bush e a eleição de Obama, mudou o diálogo Brasília-Washington?
Comparado aos embaixadores de Bush, todos homens de negócio e politicamente escolhidos para o cargo, o atual embaixador, Thomas Shannon, é bem mais preparado, fala português e é conhecido do Itamaraty. Mas existe um descontentamento com o fato de Obama nunca ter arranjado tempo para vir ao Brasil. Esse foi um sério erro de seus dois primeiros anos na Casa Branca. Por outro lado, o presidente estava atolado com a crise financeira, as guerras no Iraque e no Afeganistão e depois com o vazamento de óleo no Golfo do México. Mas o problema é que em Washington não há ninguém acima do secretário assistente que saiba o que é o Brasil. Há especialistas em Arábia Saudita, Rússia, União Europeia, África do Sul, mas não em Brasil, um país de 190 milhões de habitantes, com uma economia competitiva. Washington não entende que, além de China, haja novos atores emergindo e o Brasil não seja mais um ator periférico, mas uma potência global permanente.

O Brasil é visto pelos EUA como um interlocutor com a América Latina?
Para o governo americano, seja ele republicano ou democrata, todos os países abaixo do México são incompreensíveis. Pensam que o Chile deve ser igual ao Brasil e Paraguai e Uruguai sejam a mesma coisa. "Onde fica a Argentina mesmo?" Infelizmente, Washington gostaria que o Brasil fosse um guarda de trânsito para facilitar suas relações com a América Latina. Alguém que sinalizasse como agir e controlasse as coisas para os americanos. O Brasil nunca fará isso. Tem interesses próprios na região e já mostrou claramente que respeita a soberania dos vizinhos. A posição brasileira de fortalecer a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) é uma tentativa de manter Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa numa mesma tenda, onde o diálogo seja possível. O que o Brasil não quer é conflito. Lembro-me de quando houve um problema com a Bolívia, e o presidente Evo Morales nacionalizou o petróleo. Lula ligou para Evo, convidou-o a ir a Brasília e resolveram a questão. Quando houve atrito em Itaipu, o presidente paraguaio, Fernando Lugo, também foi chamado e fez-se um acerto. É assim que o Brasil opera.

Mas a mediação brasileira não foi assim tão efetiva numa crise como a do governo Zelaya, em Honduras.
Honduras foi uma infelicidade. Todo mundo errou: EUA, Brasil e Honduras. Não tenho como comprovar, mas imagino que os EUA provavelmente sabiam que os militares hondurenhos iam se manifestar e, nessa situação, deveriam ter dito que não apoiariam um golpe, mesmo sendo Zelaya um presidente antiamericano. Ora, se lidamos com Chávez, Morales, Ortega, Lugo, deveríamos ter lidado também com Zelaya.

Afinal, como o senhor avalia a política externa brasileira sob o governo Lula?
Lula consolidou a posição do país entre os Brics e mostrou que o Brasil já consegue arcar com o próprio peso nas negociações internacionais, sem precisar ser guiado. O país foi ativo no G-20, com críticas aos EUA e à UE. É impossível pensar numa reunião do G-20, ou num encontro sobre mudanças climáticas, sem a presença do Brasil - isso devido à Amazônia e também porque o país é um grande exportador agrícola. Com o pré-sal e o etanol logo vai se tornar um importante exportador de energia. E, como Lula gosta de dizer, o país foi mesmo "o último a entrar na crise e o primeiro a sair". O sistema bancário brasileiro está bastante saudável se comparamos ao da Europa, que tem crises diárias, e ao nosso, bem enfraquecido. Nessa área, o Brasil tem uma história para contar.

Em sua opinião, a política externa de Dilma seguirá na mesma direção?
Antonio Patriota, cotado para ser o próximo chanceler, é um ótimo comunicador e deve continuar a política externa do presidente Lula, de perfil realista, com diversificação dos parceiros comerciais e manutenção de relações amigáveis com EUA, Inglaterra e França, mas também com China e África do Sul, e dos laços Sul-Sul que o Brasil tem cuidadosamente tecido nestes últimos 12 anos. Não acho que Dilma venha a ser forte nas relações exteriores, mas Lula nos surpreendeu e ela poderá fazer o mesmo. Penso que ela terá outro perfil. Seu foco serão os assuntos internos. Ela tem uma agenda bem mais complicada que a de seu antecessor. Terá que lidar com gargalos na infraestrutura e com o pré-sal.

Dilma não é uma figura popular como Lula.Isso muda a imagem do Brasil lá fora?
Perdi a conta das tantas vezes que abri um jornal americano para ler que "a nova presidente do Brasil é uma ex-guerrilheira". Nunca li isso em Paris. Os europeus simplesmente não se referem a Dilma nesses termos. Recebi de um grupo direitista americano a ficha de Dilma quando foi presa pela ditadura militar. Quão ridículo é isso? Nós todos éramos diferentes na década de 60. Infelizmente, os conservadores do Congresso americano, agora mais poderosos depois das eleições, compraram a ideia de que o Brasil seja agora uma nova Venezuela. Mas a Casa Branca não pensa assim. E uma embaixada brasileira competente poderá evitar a construção dessa falsa imagem do país.

Sobre a Amazônia, o embaixador Sobel teria caracterizado a preocupação brasileira de "paranoica". Qual é o peso dessa revelação?
Eu não diria que é paranoica, mas li o Plano Nacional de Defesa inteiro, assim que saiu - devo ter sido um dos poucos - e, de fato, há uma preocupação grande com a segurança da Amazônia. Mas isso tem explicação histórica. Nos últimos 400 anos, seja sob o Império ou a República, o governo brasileiro sempre se preocupou com isso, não é novidade. A Amazônia, chamada de "pulmão do mundo", sempre foi difícil de controlar, tendo em vista a mineração, o desmatamento e o crescente avanço da fronteira agrícola. Além disso, por ter fronteiras com vários países torna-se via de contrabando de drogas. Por isso, há reforço militar na região. Dilma terá que focar esforços na questão de segurança das fronteira. E manter o ministro jobim na Defesa foi correto porque ele tem boas relações com Washington.

Pois o ministro Jobim surgiu como um personagem central dos despachos do WikiLeaks. A revelação de que ele teria comentado sobre um tumor de Evo Morales, além de ter dito que o ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Samuel Pinheiro Guimarães, "odeia os Estados Unidos", causou desconforto. O senhor calcula que esses vazamentos venham a ter relevância?
O problema é que eles demonstraram que tem muita gente falando sobre o que não deve para quem não pode. E que as pessoas deveriam ter mais cuidado quando veiculam suas opiniões. A diplomacia, de modo geral, terá que mudar. Particularmente embaixadores politicamente apontados, ou seja, os que não são funcionários de carreira como no Itamaraty, terão que ser cuidadosamente orientados sobre o que não podem falar. Por exemplo, não podem relatar rumores, apenas fatos. E fatos baseados em política, não em personalidade. Muitos desses despachos se concentram na personalidades dos líderes, como aconteceu com documentos enviados da Argentina, tratando do quadro de ansiedade de Cristina Kirchner e levantando hipóteses sobre sua saúde mental. Isso é coisa que um diplomata brasileiro, de carreira, sabe que não pode pôr no papel. Diplomatas americanos falam demais. Suspeito que muitos assinem relatórios escritos por funcionários juniores sem lê-los e sem entender as implicações de seus atos.

Na semana passada, o Exército e a Marinha foram acionados para combater o tráfico nos morros do Rio. Não houve menção a pedir ajuda aos EUA para resolver a questão como fizeram a Colômbia com as Farc e o México com os cartéis. Existe maior resistência do Brasil em relação à ingerência dos EUA na questão da segurança interna?
A situação da Colômbia é complicada por conta da Venezuela, com quem os EUA têm péssimas relações. Entre México e EUA existe uma fronteira de 2 mil quilômetros, e a situação ali é trágica, o que, é claro, também preocupa os americanos. Agora, o Brasil parece estar muito mais confortável para lidar com os seus problemas internos sem se voltar a atores estrangeiros. A convocação do Exército para ocupar o Complexo do Alemão foi muito importante. O governo parece estar finalmente se concentrando na Copa de 2014 e nas Olimpíadas de 2016. Confesso que estava um tanto preocupado com isso.

Qual era sua preocupação?
A Copa de 2014 é particularmente importante para o brasileiros. Vocês tentarão se recuperar do desempenho que tiveram na África do Sul. O desafio maior não é o dinheiro. Há 20 anos, o mundo teria se preocupado com a possibilidade de o Brasil não ter como financiar esses eventos. Hoje, não. A questão é se vocês conseguirão entregar os aeroportos, as estradas e a rede hoteleira necessária para receber os visitantes. O Brasil se saiu bem nos Jogos Pan-Americanos, mas por pouco. E, em 2014 e 2016, o trabalho exigido será bem maior.

O interesse do Brasil por um assento no Conselho de Segurança foi citado como ‘obsessão’ pelo representante da missão americana aqui. Em visita à Índia, Obama disse apoiar aspirações semelhantes daquele país. Deveria fazer o mesmo com o Brasil?
A relação dos EUA com a Índia é estratégica por causa da situação instável no Paquistão, Afeganistão e China. Por isso, a atitude de Obama. Na América Latina, são poucas as situações de fato preocupantes para a Casa Branca. É difícil para os brasileiros entenderem que, por bem ou por mal, o Brasil não é ameaça para ninguém.

Em janeiro, um documento da embaixada americana em Paris chamou o Brasil de ‘ingênuo’ por tentar negociar com o Irã. Já Celso Amorim disse que o acordo ‘entrará para a história como a inauguração de um mundo multipolar’ e ele ‘não vai cobrar direito autoral’. Até que ponto a posição do Brasil em relação ao Irã pode ter sido prejudicial para a relação com os EUA?
Falando com um ex-ministro de Relações Exteriores do Brasil, cujo nome não vou revelar, ele me disse que Obama mandou uma carta a Lula, que foi interpretada pelo governo brasileiro como sinal verde para prosseguir nas negociações com o Irã. E a mesma carta foi entendida por Washington como sinal amarelo: "Cuidado, Brasil, não faça nada sem nos consultar". Foi uma má interpretação da parte de ambos os países. O que me surpreende é que a Turquia não tenha sido repreendida pelos EUA, enquanto o Brasil foi. E a Turquia é um parceiro estratégico, faz fronteira com o Iraque, é membro da Otan e pleiteia uma cadeira na UE. Essas rusgas podem se tornar mesquinhas. A secretária de Estado Hillary Clinton, por sua vez, fez um discurso no mês passado no Conselho de Relações Exteriores em que falou das importantes alianças e citou Rússia, Índia e China, três membros do Bric. Não mencionou o Brasil. Esse é o tipo de coisa que Washington não deveria fazer. A demora de dez meses para instalar no Brasil o embaixador Shannon foi também uma atitude ridícula. O Brasil nunca deixa sua embaixada em Washington vazia mais do que duas semanas.

O WikiLeaks revelou que o governo Obama está preocupado com a comunidade islâmica no Brasil. Outros documentos responsabilizavam Dilma Rousseff, na época chefe da Casa Civil, por derrubar, por razões ‘ideológicas’, projeto de lei de 2007 que reforçaria o combate ao terrorismo no País. Como o senhor avalia a atitude americana?
Não entendo por que os EUA acham que o Brasil precise de uma política para o terrorismo. Não há nenhuma ameaça terrorista na América Latina.
Washington não entende que o Brasil não seja um país ideológico. É um país para onde todo mundo migra. Em muitos aspectos, o Brasil é mais um caldeirão racial do que os EUA, que gostam de se pensar como o grande caldeirão do mundo, o que de fato fomos, há cem anos.

O que seria o ‘novo Brasil’ ao qual o senhor se refere no título de seu novo livro?

Primeiro precisamos entender o que era o "velho Brasil": incompetente, sempre em déficit e em crise econômica. Mas, a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, do Plano Real, da Lei de Responsabilidade Fiscal e do controle da inflação começou a emergir um novo país. Lula teve sorte. Recebeu uma economia em estado decente, não soberba, mas decente. E herdou a era de boom das commodities. O Brasil viveu bons anos ultimamente. Conseguiu aumentar reservas, subir o índice de investimento e teve decisões acertadas, como a de colocar, e manter, Henrique Meirelles no comando do Banco Central. Fora isso, pela primeira vez desde a chegada de Pedro Álvares Cabral vocês estão reduzindo a pobreza e estão aí os efeitos do Bolsa-Família no governo Lula. Enfim, o Brasil está no mapa.

Fonte: O ESTADO DE SÃO PAULO, via NOTIMP




Receba as Últimas Notícias por e-mail, RSS,
Twitter ou Facebook


Entre aqui o seu endereço de e-mail:

___

Assine o RSS feed

Siga-nos no e

Dúvidas? Clique aqui




◄ Compartilhe esta notícia!

Bookmark and Share






Publicidade






Recently Added

Recently Commented