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A jogada global de Lula





Como o presidente do Brasil assumiu o papel de "o cara" e entrou em conflito com os EUA ao mediar a crise com o Irã

Luiza Villaméa

ImagemDESENVOLTURA
Lula, com Ahmadinejad: atuação brasileira reflete
mudança na relação de forças entre as potências

Em abril de 2009, em Londres, na ­descontraída sessão de fotos dos presidentes do G-20, o fórum que reúne as 20 maiores economias do planeta, o presidente americano, Barack Obama, abraçou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e falou alto, para os outros líderes que estavam por perto: “Este é o cara.” Pouco mais de um ano depois, Obama viu o presidente brasileiro aparecer realmente como “o cara”, no xadrez das negociações internacionais até então reservadas às grandes potências. Lula era a voz dos emergentes, fazendo-se ouvir na questão mais aguda do momento para a paz mundial. O Brasil não pediu licença para entrar no jogo que está tirando o sono dos poderosos. Depois de quase sete meses de impasse entre o time capitaneado pelos Estados Unidos e o grupo comandado por Mahmoud Ahmadinejad, do Irã, Lula fez a sua mais ousada jogada internacional. Com o apoio da Turquia, desembarcou no Golfo Pérsico para uma inusitada sessão de esforço diplomático. Quando deixou Teerã, na segunda-feira 17, ostentava a condição de mediador de um acordo que pode ser o primeiro passo para romper as hostilidades entre o Irã e a Agência Internacional de Energia Atômica.


DIPLOMACIA
Lula, com o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, e, no meio, Ahmadinejad

A atuação do brasileiro e de seu colega turco – o primeiro-ministro Recep Erdogan – provocou ceticismo e uma ponta de inveja no Ocidente. Afinal, esse protagonismo era tradicionalmente coisa para outra gente. “O cara”, em temas-chave do Conselho de Segurança da ONU, sempre foi o homem que, no momento, ocupava a cadeira presidencial dos EUA. Além das desconfianças generalizadas quanto ao programa nuclear iraniano, incomodou a desenvoltura de Lula e a ameaça de uma guinada na relação de forças entre as novas potências mundiais, como ele próprio tratou de lembrar no dia seguinte, em Madri: “O Brasil quer ser um ator global porque não concordamos com a atual governança mundial. São necessários mais atores, mais negociações e mais disposição para dialogar.”

É a primeira vez que um país emergente intervém de maneira direta em um conflito tão explosivo. “O Brasil já vinha se projetando como ator mundial relevante em temas como a regulação do capital financeiro e a reunião do G-20”, lembra o cientista político Aldo Fornazieri, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. “Mas o País jamais tinha participado de forma tão contundente.” A ofensiva diplomática de Lula, na realidade, começou em meados do ano passado, quando ele decidiu ocupar o vácuo existente entre o regime de Ahmadinejad e a comunidade internacional na discussão da crise nuclear iraniana. A estratégia para atuar no cenário internacional, porém, veio sendo construída desde que ele assumiu o Palácio do Planalto. E tem um lastro material – a multinacionalização de empresas brasileiras e a abertura de novos mercados para o País.

Roteiro Internacional

Lula consolida sua liderança regional e tenta projetar o Brasil como ator em questões reservadas às grandes potências. Nesta trajetória coleciona vitórias e tropeços

1 - DEZEMBRO DE 2003
Com a meta de estreitar vínculos comerciais, Lula participa de encontro da Liga Árabe, no Egito, e depois visita o ditador da Líbia, Muammar Kadafi. O presidente também mostra empenho em liderar um bloco de países pobres para conquistar uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU

2 - MARÇO DE 2006
Durante três anos, concentra nos países pobres a maioria de suas 47 visitas ao Exterior. Lula volta, então, o interesse do governo brasileiro para as nações desenvolvidas. O marco dessa mudança é o encontro com a rainha da Inglaterra, Elizabeth II, no Palácio de Buckingham, onde é recebido com um banquete

3 - MAIO DE 2006
Aliado de Hugo Chávez, o líder da chamada revolução bolivariana na Venezuela, Lula é pego de surpresa por um dos integrantes do grupo. Quatro meses após assumir o poder na Bolívia, Evo Morales nacionaliza as reservas de gás natural e manda o Exército ocupar duas refinarias da Petrobras

4 - MARÇO DE 2007
Lula torna-se o primeiro brasileiro a ser recebido para uma reunião de trabalho em Camp David, a base militar e casa de campo que serve de retiro aos presidentes americanos. Com George W. Bush, ele discute desde a presença de tropas brasileiras no Haiti até formas de destravar barreiras comerciais no mundo

5 - ABRIL DE 2009
Além de festejado por ajudar a impulsionar a mudança de polo do poder do G-8 para o G-20, que inclui os países emergentes, Lula ganhou reconhecimento adicional. “Esse é o cara”, disse o presidente americano, Barack Obama, em Londres, em cena gravada por cinegrafistas. “Ele é o político mais popular da Terra.”

6 - SETEMBRO DE 2009
O presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, abriga-se por mais de quatro meses na embaixada brasileira, provocando grave crise diplomática. Até hoje o governo Lula não reconhece o novo presidente de Honduras, Porfirio Lobo, cuja eleição ocorreu durante o governo que depôs Zelaya

7 - JANEIRO DE 2010
Em sete anos de viagens, Lula consolida parcerias de peso. A França, do presidente Nicolas Sarkozy, é uma das principais. A presença do Brasil no Haiti é reforçada no socorro às vítimas do terremoto que devastou o país. Desde 2004, tropas brasileiras já estavam à frente das Forças de Paz da ONU na região

8 - FEVEREIRO de 2010 DE 2010
Em Cuba, Lula posa sorridente ao lado de Fidel e ignora a morte do “prisioneiro de consciência” Orlando Zapata, em consequência de uma greve de fome. “Um cidadão que entra em greve de fome está tomando uma opção. Na minha opinião, uma opção equivocada”, diz Lula, quando questionado

9 - MAIO DE 2010
O presidente brasileiro tem papel essencial em acordo assinado pelo presidente Mahmoud Ahmadinejad para troca de urânio iraniano por combustível nuclear. Recebido com ceticismo nos Estados Unidos e na Europa, o tratado pode ser, porém, o primeiro passo para solucionar a crise atômica iraniana

Não por acaso, Lula costuma estimular seus ministros a atuarem como “mascates” do Brasil no Exterior. E nenhum presidente brasileiro correu tanto o mundo quanto ele. Até agora, foram 189 viagens ao Exterior (Fernando Henrique Cardoso fez 115). No primeiro mandato, o presidente privilegiou as visitas aos “companheiros” pobres da América Latina e da África. A partir do segundo mandato, passou a dar prioridade às visitas à Europa. No continente, um de seus principais interlocutores é o presidente francês, Nicolas Sarkozy, que na semana passada agradeceu ao Brasil pelas negociações que culminaram na libertação da professora Clotilde Reiss. Presa durante a onda de protestos que sacudiu o Irã em julho passado, a francesa era acusada de espionagem.

A mais rumorosa conquista do Brasil em Teerã, porém, pegou o mundo de surpresa. Depois de 18 horas de negociação, o regime de Ahmadinejad assumiu um compromisso que o governo Obama tentava desde outubro do ano passado. Nem o primeiro-ministro da Turquia, envolvido na intermediação, acreditava em um desenlace positivo. Tanto que ele só desembarcou em Teerã na última hora, quando o jogo já estava definido. Lula, por sua vez, chegou a ser recebido pelo líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, antes de fechar o acordo. Ele prevê o envio de 1,2 mil quilos de urânio pouco enriquecido do Irã à vizinha Turquia em até um mês depois do aval da Agência Internacional de Energia Atômica. Em contrapartida, o Irã receberia em um ano 120 quilos do material processado a 20%, grau suficiente para abastecer seus quatro reatores de pesquisa médica (leia quadro sobre enriquecimento de urânio).

Classificada pelo presidente russo, Dmitri Medvedev, como “a última oportunidade” do Irã antes da adoção de medidas retaliatórias, a iniciativa brasileira contava também com o suporte dos Estados Unidos. Em mensagem despachada três semanas antes para o presidente brasileiro, Obama chegou a incentivar o uso do peso das relações comerciais do Brasil com o Irã para fazer o regime de Ahmadinejad negociar. Ainda assim, mal o sinal verde foi disparado do Golfo Pérsico, a secretária americana de Estado, Hillary Clinton, que já havia chamado Lula de ingênuo, torpedeou os resultados obtidos. Em nova versão, Hillary qualificou os esforços do Brasil e da Turquia em negociar com o Irã como “sinceros”, mas avisou que continuaria a “convocar a comunidade internacional em prol de uma resolução com sanções duras” ao Irã.

O argumento americano é de que, de outubro para cá, o Irã teria aumentado o seu estoque de urânio, o que tornaria a quantidade acertada no acordo insuficiente para impedir que o país continue um programa com fins militares. Desta forma, um dia depois de o Brasil e a Turquia celebrarem o acordo com o Irã, os Estados Unidos apresentaram um rascunho de resolução durante reunião do Conselho de Segurança da ONU, em Nova York. A proposta, que deve ser votada no mês que vem, prevê, já como reflexo do acordo conseguido por Lula, sanções menos rígidas do que pretendiam os americanos. Os EUA temiam os vetos da Rússia e da China. Por enquanto, dos 15 países com assento permanente ou rotativo no Conselho, apenas Brasil, Turquia e Líbano são contra as sanções.

EMBATE
Hillary Clinton chamou a diplomacia brasileira de ingênua
e pediu “sanções duras” contra o Irã

A embaixadora brasileira nas Nações Unidas, Maria Luiza Viotti, abandonou a reunião 40 minutos depois de seu início. “O Brasil não vai participar neste momento porque sentimos que existe uma nova situação. Houve um acordo muito importante. O momento é de diplomacia”, disse a embaixadora. A reação de Maria Luiza foi combinada com o Itamaraty. Em telefonema à embaixadora, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afirmou que a representação brasileira no Conselho não poderia compactuar com a decisão americana. Em represália, ela deveria deixar o encontro, caso fosse confirmado o pedido de novas sanções contra o Irã.

Quase na mesma hora em que a embaixadora abandonava a reunião em Nova York, em Brasília, Amorim afirmava à imprensa que os países “não colocaram na balança as coisas que Lula falou.” Em seguida, Amorim anunciou o envio da carta, redigida a quatro mãos com o governo turco, aos membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, defendendo o acordo. Especialista em política nuclear, o físico Luiz Pinguelli Rosa acredita que o Brasil deve continuar a defender a ideia de uma solução negociada com o Irã. “O jogo ainda não terminou”, diz Pinguelli Rosa, que é diretor da Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Essa também pode ser uma oportunidade para discutir o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares em sua plenitude.” Firmado em 1968, o tratado prevê em seu sexto artigo o estabelecimento de planos de redução de armamentos nucleares. “As potências nucleares, signatárias do tratado, nunca fizeram nada neste sentido.” O físico lembra também que Israel, arqui-inimigo do Irã, já tem a bomba nuclear, jamais assinou o tratado e não provoca o mesmo tipo de reação no Ocidente. “Nada indica que, se houver novas sanções econômicas, o Irã vá recuar”, diz Pinguelli Rosa. “Nada também impede que, isolado, o Irã faça a bomba. O isolamento, pelo contrário, pode empurrá-lo nesse sentido.”

A imprensa mundial, apoiando ou batendo na posição do Brasil, acabou dando elevada dimensão ao acordo com o Irã. Editoriais mais conservadores, como o do “Miami Herald”, classificaram a atuação de Lula como “megalomania diplomática”, enquanto outros, como o do espanhol “El País”, saudaram o “gol brasileiro”. Já a diplomacia de Obama foi considerada nada mais que “boboca” pelo “Herald Tribune” e “fadada ao fracasso” pelo “The Wall Street Journal”.

Fonte: REVISTA ISTO É, via NOTIMP




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