No ar, na terra e no mar
Pouco mais de duas décadas depois do ingresso na Marinha, as mulheres ganham chances reais de chegar ao almirantado. No Exército, elas já são maioria no quadro temporário. E, na Aeronáutica, ocupam postos de comando e pilotam de caças a aeronaves de resgate
João Rafael Torres, Joana Tiso e Cristine Gentil
Apoio e auxílio são duas palavras que sempre caracterizaram a presença feminina nas Forças Armadas. Quando ingressaram na Marinha, no Exército e na Aeronáutica, a missão das mulheres era garantir a retaguarda dos serviços, sobretudo técnicos, administrativos e de enfermagem — deixando aos homens as funções operacionais ou de combate, fossem em mar, ar ou terra. Mas, depois de duas décadas da entrada das primeiras mulheres na Marinha, a primeira força a admiti-las, elas já ocupam postos de comando, cargos estratégicos e altas patentes — isso também no Exército e na Aeronáutica.
A tenente Karla seguiu a trajetória do marido, também militar, e entrou no Exército com uma patente maior que a dele: “Ele me ajudou muito”
A Revista ouviu algumas delas para falar sobre o desafio de conviver em um ambiente onde a presença masculina é hegemônica, a possibilidade de chegar ao topo da carreira e a rotina militar. Tanto para as que estão próximas a entrar na reserva quanto para as que estão começando como militares, a disciplina e a hierarquia não apenas são toleradas, como enaltecidas. O fascínio pela missão desempenhada e o apreço pela estabilidade são apontados como atrativos importantes.
Logo que entram, elas se apaixonam pela farda — as que não se adaptam simplesmente abandonam. Também sabem exatamente até onde podem chegar na carreira e que serão promovidas se preencherem critérios técnicos, como tempo de serviço e cursos de formação. Tudo isso, para elas, faz das Forças Armadas um empregão, que proporciona segurança e certezas. A ponto de deixar detalhes, que podem parecer um martírio para a maioria das mulheres, insignificantes. Sim, elas não estão nem aí em ter que usar o mesmo penteado; o brinco nunca ultrapassando o lóbulo da orelha; a maquiagem e o esmalte bem clarinhos; as fardas impecavelmente engomadas. “Faz parte”, dizem, simplesmente.
E sobre os homens? Eles se acostumaram à presença delas, já que para algumas tarefas as mulheres são requisitadas até com mais frequência. Não são preconceituosos — ou, os que são, não revelam. Mas é fato que alguns ainda estranham as colegas de trabalho quando as veem à paisana ou vestidas para as festas de gala e até se constrangem quando a patente derruba o cavalheirismo, obrigando-os a ter preferência de passagem diante de uma dama.
Exército no DNA
Aos 5 anos, a filha da major Dayse Duarte Neves Penteado, 43 anos, já tinha tido cinco casas diferentes. “É uma nômade”, brinca a oficial de magistério. Mas a infância da menina não difere muito da sua. “Eu já nasci mudando.” Filha de militar e casada com militar, a professora de inglês acostumou-se à vida errante. Já morou de Rezende, no Rio de Janeiro, a Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul. Nem sequer estranha mais quando tem que fazer as malas e seguir para outro lugar onde precisem dela ou do marido. E detalhe: para cuidar de sala de aula a pregões e outras tarefas mais administrativas. “A camaradagem é muito forte no Exército e sempre encontramos pessoas com quem servimos em outras cidades”, conta a professora de inglês, que dá aulas no Colégio Militar de Brasília, mas já atuou em outras sete unidades.
Naturalmente, a proximidade com a vida militar a fez seguir carreira logo que o Exército abriu as portas para as mulheres. Em 1992, ingressou na primeira turma mista do quadro complementar de oficiais. Fez o curso de formação na Escola de Administração do Exército, em Salvador (BA), e seguiu para seu primeiro posto na Academia Militar, em Rezende (RJ). “Ali, estava no quintal da minha casa”, resume. Tal cumplicidade com a vida dos quartéis deixou a estreia mais tranquila, mesmo sendo parte da primeira turma mista. “Quem sentiu mais foram eles. Os homens não sabiam direito como agir”, revela.
A tenente Karla Gomes Moreira, 36 anos, que há dois anos passou no concurso para oficial do Exército, reforça que não há tratamento diferenciado por ser mulher. “As diferenças mínimas que existem são por conta da nossa estrutura física, que é diferente da dos homens. Mas tivemos exatamente a mesma formação.” Atualmente oficial de comunicação, Karla é publicitária e decidiu fazer o concurso também por incentivo do marido, que é subtenente. “Já na escola, você percebe, pela conduta e pelo comportamento de todos, que trabalhar no Exército é um orgulho. A gente leva a organização do trabalho para dentro de casa também”, enumera.
Ainda novata na vida militar, porém totalmente adaptada, Karla só vê vantagens na carreira. Sobre a possibilidade de mudanças? “É ótimo poder conhecer outros estados, novas culturas. Tem uma carga de aprendizado importante. Para mim, é um desafio.”
A mais alta patente
Em 1992, foi autorizada a contratação de mulheres no Quadro Complementar de Oficiais do Exército: 49 mulheres foram matriculadas na Escola de Administração do Exército. Em 1996, elas foram incluídas no quadro temporário. A partir de 1997, o Instituto Militar de Engenharia (IME) e a Escola de Saúde do Exército passaram a aceitar mulheres também. São engenheiras e médicas de carreira, que podem chegar à patente de general. A expectativa é que, este ano, duas mulheres sejam incluídas no curso de formação que as credencia a alcançar o posto de general. Atualmente existem 5.173 mulheres no Exército, como militares de carreira ou temporárias. No quadro temporário, elas já são maioria em relação aos homens.
A ajuda chega do céu
Márcia Laffratta é piloto do Esquadrão Pelicano: trabalho em resgates e acesso à população de áreas isoladas
Quando completou 18 anos, Márcia Laffratta decidiu que, em vez de tirar carteira de motorista, como as amigas, alçaria voos mais altos — literalmente. Ingressou em um curso para formação de pilotos. Ainda no mesmo ano, o pai dela a avisou sobre o processo seletivo da Força Aérea Brasileira (FAB). No ano seguinte, Márcia Laffratta se tornaria uma militar.
Hoje, aos 26 anos, a tenente Márcia desempenha uma importante e delicada missão. Ela é piloto do chamado Esquadrão Pelicano, que se dedica ao resgate de aeronaves perdidas no território nacional. Pilota helicópteros e grandes aeronaves de resgate. No posto, lida com tudo aquilo que poderia ser excessivamente assustador para a maioria das pessoas, sejam homens ou mulheres: estar vulnerável a perigos de uma noite, no meio da floresta, por exemplo. “O risco é inerente à escolha. Mas, graças a Deus, nunca me senti incapaz de uma missão”, diz.
A aura de rigidez que envolve o trabalho militar foi assimilada com naturalidade. Por ser filha de um militar do Exército, ela sabia que a escolha profissional exigiria dedicação e comprometimento. “Quando era criança, questionava muito quando ele chegava tarde em casa. Hoje, o entendo perfeitamente”, compara. A decisão pelo ingresso na carreira militar foi questionada, especialmente por amigos da adolescência. “Hoje, a maior cobrança é da família, que sofre com a ausência durante as missões.” Márcia é casada também com um militar.
A escolha pelo esquadrão, segundo ela, é uma decisão patriótica. Além de resgates, ela já trabalhou no transporte de médicos e urnas eletrônicas para populações isoladas. “Vejo em minha função a recompensa pela ajuda a outros brasileiros expostos a situações de risco ou privados de exercer a cidadania”, avalia.
O dobro de mulheres
Apesar de estarem na Força Aérea Brasileira desde 1982, as mulheres conseguiram ampliar espaço significativamente nos últimos sete anos, quando o efetivo feminino se duplicou — de 2,9 mil para 6,4 mil, em postos que vão de 3º sargento a tenente-coronel. Nenhuma, no entanto, chegou à patente máxima de tenente-brigadeiro-do-ar. No quadro, há 18 mulheres que pilotam aeronaves, de helicópteros a caças. A instituição oferece oportunidades para mulheres com idade de 18 a 42 anos, que podem ter especialidades militares ou em prestação de serviço, como médicas, publicitárias e advogadas. A formação é feita em São Paulo e Minas Gerais.
Carreira de pioneirismo
Beatriz Degrazia é assistente direta do comandante da FAB: primeira mulher a exercer a função
Conquistar uma alta patente na carreira militar é sinal de competência e recompensa. Não foi diferente com a tenente-coronel Beatriz Degrazia, 49 anos. Ela foi pioneira no quadro feminino da Força Aérea Brasileira (FAB) e hoje, 27 anos depois, ocupa um dos cargos estratégicos mais disputados dentro da corporação: é chefe da Subdivisão de Apoio do Gabinete do Comandante de Aeronáutica. O posto a liga diretamente ao mais alto escalão da força militar. Funciona como uma assistente direta do comandante da FAB quando ele está no Rio. Assim como foi no início da carreira, também assume a função com pioneirismo: é a primeira mulher a exercê-lo. “É uma posição, ao mesmo tempo, importante e sensível, pelo teor de responsabilidade.”
Beatriz ingressou na FAB na segunda turma de formação feminina, em 1983, numa mescla de expectativa e apreensão. Tinha 22 anos. A decisão foi influenciada por um irmão, que era militar, e pela perspectiva de estabilidade e melhor salário. O primeiro temor era o embate entre as regras rígidas atribuídas aos militares, especialmente para quem tinha acabado de sair da faculdade de jornalismo, “um curso livre”, como define. “Obviamente, houve um estranhamento à estrutura. Mas tudo foi questão de adaptação.”
Outro temor era saber lidar em um terreno onde o masculino predominava. O medo velado de hostilidade foi dissolvido logo na chegada. “Desde o início recebi uma boa acolhida”, relembra. A dedicação fez com que, aos poucos, ela ascendesse a cargos de comando da corporação. Todas as promoções, garante, foram respeitadas pelos colegas homens. “A ascensão feminina é uma conquista natural. A tropa se preparou para isso, se adaptou para que chegássemos a este momento.” Hoje, no topo da carreira, a tenente-coronel Beatriz analisa toda a trajetória que viveu como, principalmente, um exemplo para outras mulheres. “Sei que o papel de pioneirismo serve de referência para as jovens que se decidem pela carreira militar”, acredita.
Sonhando alto
Martha, capitão-de-mar-e-guerra, e Patrícia, capitão-de-fragata: regras claras permitem às mulheres trilhar o caminho para as promoções
A chance de uma mulher chegar pela primeira vez a vice-almirante da Marinha, posto máximo para o grupo feminino, já agita as militares do Rio de Janeiro. “Quando acontecer, vai ser chiquérrimo”, brinca a engenheira Martha Lúcia Pouman, recém-promovida a capitão-de-mar-e-guerra e integrante da segunda turma do já extinto Quadro Auxiliar Feminino. Aos 54 anos e com quase três décadas na Marinha, Martha ainda sonha com o topo da carreira. “Tenho as credenciais necessárias para chegar lá, embora minha idade seja um pouco avançada. Cada posto tem um limite (o de vice-almirante é 64 anos).” O tempo médio dos engenheiros em cada patente é de seis anos. Se Martha cumprir o período todo como capitão-de-mar-e-guerra, ultrapassará o limite para o cargo, que é de 59 anos. Neste caso, passaria para a reserva da Marinha.
Martha é carioca, divorciada, não teve filhos e dedicou metade da vida à Marinha. Entrou nas Forças Armadas por acaso. Embora tenha militares na família, não sofreu influência. Engenheira formada, fazia mestrado na PUC-Rio quando um amigo de turma levou para a faculdade um prospecto do concurso. “Encarei como uma boa oportunidade no mercado de trabalho.”
O treinamento físico puxado, de duas a três vezes por semana, assusta e afasta muitos “concurseiros” da Marinha. Não Martha. “Tenho um lado esportivo forte e acho ótimo. Tem gente que se ressente um pouco, até pelo biótipo ou formação. E nem todo mundo tem sangue frio para aguentar.”
Martha é gerente de projetos da Diretoria de Sistema de Armas da Marinha. A carga de trabalho é grande, com uma jornada que em muitos dias vai das 8h às 18h. “É como um engenheiro no mercado civil, principalmente no que diz respeito a horário e função. A diferença é que atuo com atividades e projetos ligados à Marinha especificamente.” Ela garante que trabalhar num ambiente predominantemente masculino nunca foi problema. “Talvez eu conviva com mais mulheres aqui do que na época em que fiz faculdade. Engenharia é uma área técnica. Conta muito a capacidade intelectual e o histórico de cada um, independentemente do sexo”, afirma.
Martha acredita que o desconforto é até maior para os homens. “Acho fácil liderar homens. Eles veem a mulher como a mãe, a irmã ou a esposa. Então quando você fala, em geral, eles te respeitam. O problema é que o homem foi orientado a ceder o lugar e dar a vez. Mas dentro das Forças Armadas nós temos uma hierarquia. Se o homem for mais antigo do que eu, tenho que parar para deixá-lo entrar na minha frente. Às vezes, isso causa um certo desconforto. Eles ficam sem graça de deixar a mulher para trás”, conta a engenheira.
Para ela, o incômodo inicial com a presença feminina foi provocado pelo ineditismo da situação. Embora elas ainda representem uma fatia pequena da Marinha (6% dos mais de 59 mil militares), Martha acha que os jovens já não estranham a convivência com as mulheres nas Forças Armadas. “Agora faz parte”, resume.
Você sabia?
Há 3.724 mulheres na Marinha do Brasil, o que representa cerca de 6% num total de 59.600. Não são todas as militares que podem chegar a vice-almirante, posto máximo para o grupo feminino. Apenas as médicas, as engenheiras e as oficiais do Quadro de Intendentes têm chances de subir até o alto comando. Hoje, elas competem em igualdade de condições com os homens.
Aprender a liderar
Patrícia Leme, 47 anos, é capitão-de-fragata e médica do Corpo de Saúde da Marinha, no Rio. Militar desde 1988, não abre mão da vaidade, mas mantém a linha discreta que a carreira exige. A maquiagem é pouca, os brincos são pequenos e os cabelos não podem ficar soltos. Mais difícil foi aprender a dar ordens. “Consegui, com o tempo, conciliar a parte intuitiva e mais diálogo com a questão de comando. Na Marinha, você aprende a liderar. Hoje, me sinto totalmente à vontade e sei que responsabilidade não se passa”, disse.
A médica confessa que estranhou um pouco o treinamento inicial. De duas e três vezes por semana, os militares fazem atividades físicas para manter o condicionamento. Uma vez por ano, passam por um teste, que cumpre padrão internacional, de acordo com idade e sexo. “Nunca tinha visto uma arma antes. Quando ganhei a prova de tiro ao alvo, foi uma surpresa.”
A rotina de Patrícia não foge do trabalho de qualquer médico. É anestesista. Trabalha no hospital geral, que tem todas as especialidades e uma média de 40 cirurgias por dia. “Sou a terceira na hierarquia da clínica. Por isso, além da parte técnica, trabalho na gerência.” Ela está a três postos de chegar a vice-almirante, a mais alta patente que as mulheres podem alcançar — ainda ocupada só por homens. “Quero fazer o melhor possível pela Marinha e ir até onde a carreira me permitir. Em qualquer lugar que eu trabalhasse seria dessa forma.”
Patrícia é mãe de duas meninas, de 15 e 11 anos. Apesar da falta de experiência em atividades de disciplina e comando, garante que não teve dificuldade para se adaptar à vida militar. “É do mesmo jeito em qualquer ambiente empresarial. Você tem que respeitar o seu chefe direto e seguir as regras. Na Marinha, você sabe desde o início quais são as regras.” Para Patrícia, existia um preconceito velado nos primeiros anos das mulheres nas Forças Armadas. Mas ela acredita que os homens já aprenderam a lidar com a presença feminina.
Pioneirismo
A Marinha foi a primeira das Forças Armadas a admitir mulheres. A turma pioneira ingressou no Quadro Auxiliar Feminino em 1981. O início foi cauteloso e impôs ao grupo uma série de testes, sem garantia de efetivação. Em 1998, o Quadro Auxiliar Feminino foi extinto e as mulheres se integraram aos corpos e aos quadros da Marinha, o que permitiu a elas igualdade de condições nas promoções e nas mudanças de patentes. Hoje, o cargo máximo que podem alcançar é o de vice-almirante, não por serem mulheres, mas pelos quadros aos quais pertencem. Ainda não há mulheres num posto tão alto. Embora não haja confirmação oficial para evitar expectativas, é possível que uma médica atinja essa patente ainda este ano.
No comando
Sob a direção da comandante Aldner estão cerca de 120 pessoas da área de pessoal da Marinha
“A farda me fascinou”, sintetiza a capitão-de-mar-e-guerra Aldner Peres de Oliveira, 51 anos, 30 deles dedicados à Marinha. Primeiro, ainda como civil, e há 25 anos como militar. Já poderia pensar na aposentadoria — que, no caso dos militares, chama-se reserva —, mas acaba de receber uma missão. É a atual diretora do serviço de seleção do pessoal da Marinha, lotada no Rio de Janeiro, um cargo de alto comando. “Foi para coroar minha carreira”, diz, orgulhosa, a comandante, que chegou à patente mais graduada para seu quadro.
Para chegar ao ápice, passou por várias áreas de atuação. Engenheira de formação e com mestrado em informática, atuou na área técnica, analisando sistemas navais; na administrativa; de finanças; de comunicação social e de formação, entre outras. “Uma das coisas que aprendemos é que, na Marinha, temos que ser ecléticas. Precisamos nos adaptar a novas missões, mas todo mundo ajuda”, brinca a comandante, casada com um militar da Marinha. Outro aprendizado ocorre com as mudanças frequentes de cidade: Rio, Brasília, Natal etc.
Servindo nessas bases, a capitão-de-mar-e-guerra foi mais longe, contrariando até mesmo o folclore dos marinheiros, segundo o qual mulher em submarino dá azar. Pois ela entrou em um, lá na Alemanha, numa missão especial e ficou trabalhando, dormindo e comendo com um bando de militares. “Fui a primeira mulher a embarcar num submarino. No começo, tem aquela resistência quando a gente entra num lugar onde só trabalham os homens. Aos poucos, nós fomos mostrando nossa capacidade de trabalho e ampliamos nossa participação, conquistamos espaço, mostramos que viemos para somar”, afirma.Fonte: CORREIO BRAZILIENSE, via NOTIMP