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Artigo: Nada como um reposicionamento da aeronave








Avião é a vovozinha.

Aeronave, nos dicionários, guarda o encanto da invenção dos engenhos alados.

Marcos Sá Correa

O maior prêmio de milhagem no Brasil é a palavra “aeronave”. Todo mundo voa por aí de avião. O brasileiro, assim que põe os pés num saguão de aeroporto, sente-se na plataforma de lançamento de uma “aeronave”. É essa a palavra que rege o bailado dos passageiros nas salas de embarque. Jorra a cada cinco minutos dos alto-falantes, como um discurso do líder iluminado Kim Jong-Il nas praças de Pyongyang, incitando os norte-coreanos a jamais esmorecer na marcha pela Terra da Calma Matinal.

“Devido ao reposicionamento da aeronave no pátio”, repete uma voz feminina, deixando implícito que por trás da troca giram engrenagens complexas demais para se explicar a uma patuleia que só quer saber a meia dúzia de algarismos que designa portões, voos ou horários. O “reposicionamento da aeronave no pátio” paira acima desses detalhes. Um mero avião pode ir parar na outra ponta do aeroporto, à mercê da boa e velha desordem. Com uma aeronave, essas coisas jamais acontecem.

Avião é hoje essencialmente um artefato banal, como toda revolução do século XIX. Em outras palavras, avião é a vovozinha. Aeronave, nos dicionários, guarda o encanto da invenção dos engenhos alados. Ressoa a aventura, imprevisibilidade e improviso. Aplica-se de preferência a “qualquer aparelho capaz de se sustentar e se conduzir no ar”. E pelo menos o “Houaiss” o materializa entre os “aeróstatos” – que são nomes genéricos de balões e dirigíveis – e os “aeródinos” – que são mais pesados do que o ar, contudo voam, à la 14-Bis.

Usando “aeronave”, em vez de vulgaridades mais modernas, nossa aviação civil defende implicitamente o lugar do Brasil no advento das máquinas de voar. Sem contar que uma genuína aeronave em manobra de reposicionamento no pátio merece respeito. Infunde no público a certeza de que o atraso, seja qual for, está nas mãos de quem sabe o que está fazendo, gente cujas credenciais remontam às experiências de Santos Dumont. Os contratempos não ameaçam. Ao contrário, reiteram a certeza de que a conquista dos ares continua brasileira.

É isso, sem dúvida, que permite à voz feminina informar que – devido ao reposicionamento da aeronave no pátio – “seu embarque, quando autorizado, será...” E aí, sem tirar os pés da terra, o passageiro vai às alturas da segurança aeroportuária. O que pode ser mais confiável do que esse “quando autorizado”? Ele repõe em seu lugar a ordem ­superior, até celestial, sobre a terráquea mixórdia dos corredores apinhados, onde os passageiros saem dos toaletes abotoando-se com mãos molhadas, salgadinhos jazem esquecidos sobre os balcões das lanchonetes com a marca da primeira e última dentada, os notebooks são puxados pelos fios como cães na coleira, resistindo a sair de onde estavam provavelmente porque acabaram de achar novidades interessantes, que os donos jamais saberão quais eram.

E aí, no fim da frase, vem o dado decisivo. Ou seja, o número do novo portão de embarque. Mas não assim, de mão beijada. Ele se apresenta como meta a atingir, quem sabe até conquistar, em outro piso ou numa ala distante. E assim se produz instantaneamente um movimento popular rumo ao futuro coletivo onde deságua o destino de cada um.

Perde-se tempo nos aeroportos brasileiros. Mas dizem que isso é sinal de prosperidade e bem-estar social. Deve ser. Porque, não dando mesmo para ler, escrever, dormir ou comer sem faltar ao embarque, aprende-se a última palavra em educação moral e cívica.

Ou seja, aceitar as coisas como elas são.

Fonte: REVISTA ISTO É, via NOTIMP

Foto: Agencia Brasil




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