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WikiLeaks: A revolução de um homem só






Julian Assange é um australiano de 39 anos. E um espião. Ou jornalista. Ou hacker. Ou um criminoso foragido da polícia. Ou um anarquista, um megalomaníaco. Ou, nas palavras de Daniel Ellsberg, que na década de 70 revelou os segredos mais sujos da Guerra do Vietnã, talvez seja simplesmente “o homem mais perigoso do mundo”. Na semana passada, ficou difícil enquadrar Julian Assange numa categoria, mas não há dúvida de que ele deu início a uma revolução. Quando seu site, o WikiLeaks, passou a vazar o conteúdo de 250 000 telegramas confidenciais ou secretos de 274 embaixadas e consulados americanos espalhados pelo mundo, a roda da história começou a girar mais rápido. No pacote de revelações feiras até agora, não há nada surpreendente, sensacional ou inacreditável, mas nunca se viu ames um corpo diplomático inteiro ser inapelavelmente desnudado diante dos olhos do mundo: suas preferências e idiossincrasias, as fofocas e intrigas, seus sucessos mais discretos e seus fracassos mais retumbantes. Na imensa pilha de documentos que apenas começaram a vir a público, há narrações deliciosas como novela russa - líderes excêntricos, casamentos esplêndidos, roubalheiras monumentais - e telegramas preocupantes sobre um inimigo global: o Irã.

“Assim como os atentados de 11 de setembro mudaram o mundo do pomo de vista da segurança, as divulgações do WikiLeaks vão mudar as" relações diplomáticas no mundo”, decretou o chanceler italiano Franco Frattini. No capítulo dos personagens, há passagens cujos efeitos podem ser devastadores ao criar animosidades intransponíveis. O rei Abdullah, da Arábia Saudita, é paparicado com a deferência habitual, mas acaba exposto: pede sem parar que os Estados Unidos “cortem a cabeça da serpente”, ou seja, destruam o Irã, mas é incapaz de qualquer palavra pública. Na sua grandeza zoológica, sugere que os detentos de Guantánamo sejam submetidos a implante de chips, como se faz com “cavalos e falcões”. A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, é tratada como desequilibrada. Hillary Clinton, a secretária de Estado, quer saber se ela “está tomando algum remédio” e como lida com “nervosismo e ansiedade”. O primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, é um corrupto que esconde “oito contas em bancos suíços”. O presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, é um líder cercado por corrupção e narcotraficâncias. Os líderes russos são jocosamente descritos como “Batman e Robin”. O ditador líbio, Muamar Kadafi, é cheio de manias e fobias, e nunca viaja sem a companhia de uma ucraniana de 38 anos, a “loira voluptuosa”.

Nas questões internacionais, o retrato é inverso. O efeito talvez seja até positivo para a diplomacia americana. Fica claro que os Estados Unidos, desde a administração anterior, de George W. Bush, tem feito um esforço genuíno e sincero para conter pacificamente as ambições nucleares do Irã - que, apesar de tudo, seguem perigosamente de vento em popa. O governo americano pressionou bancos e governos para cortar negociações com o Irã e até convenceu a Arábia Saudita a fornecer petróleo à China de modo a libertar Pequim da petrodependência de Teerã. No conjunto, os telegramas mostram que o Irã não é inimigo só dos Estados Unidos ou de Israel, mas de toda a comunidade internacional. Os árabes, nas conversas sigilosas, mostram o que todo mundo sabia, mas que nunca é divulgado: eles apoiam entusiasticamente um ataque contra o Irã - mas não dizem isso em público para não açular a ira das massas islâmicas. A obsessão dos líderes árabes com o Irã é mais religiosa que nuclear: os sunitas árabes detestam os xiitas persas. Ainda assim, a revelação do que o Irã chama de “hipocrisia árabe” é tão boa para Israel que já se especula que 1ulian Assange seja agente do Mossad, serviço secreto israelense.

Em sua primeira reação pública ao vazamento, a secretária Hillary Clinton tentou passar a impressão de que está no controle da situação. Leu uma nota diante de jornalistas, disse que “vamos superar esse desafio”, mas não aceitou responder a perguntas. Porque não está no controle. Os telegramas mostram que os diplomatas americanos têm sido orientados a espionar os colegas estrangeiros na Organização das Nações Unidas, em Nova York, e nas embaixadas mundo afora, obtendo número de cartão de crédito, cartão de fidelidade de companhia aérea, dados biométricos e até DNA. O porta-voz do Departamento de Estado, Philip Crowley, limitou-se a dizer que “os diplomatas americanos são apenas isso, diplomatas” e a chamar Assange de “anarquista” e “foragido da Interpol”. O governo americano investiga o vazamento, quer descobrir um meio legal de processar Assange como terrorista e, numa reação de perplexidade, pressionou o servidor da Amazon a cortar o acesso às páginas do WikiLeaks. A Amazon cortou, o site saiu do ar por cinco horas, transferiu-se para um provedor na Suécia, que fica num bunker antinuclear a 30 metros de profundidade, e voltou fazendo chacota: se a Amazon tem tanto problema com liberdade de expressão, disse o WikiLeaks, deveria sair do mercado de venda de livros.

O megavazamento dos segredos diplomáticos de Washington põe a liberdade de expressão numa nova perspectiva. Os vazamentos de sigilo à imprensa - impressa ou eletrônica, não faz diferença - são um eterno clássico do jornalismo. Existem desde sempre, mas tinham uma peculiaridade: quem vaza quer controlar a história, quer fazer prevalecer sua versão da história, quer orientar a narrativa para este ou aquele ângulo. Um dos casos mais bem-sucedidos de vazamentos controlados é o célebre “Artigo X”, que, publicado em 1947 na revista Foreign Affairs, deu o tom da política americana na Guerra Fria (veja o quadro na pág. ao lado). Agora, o vazamento é tão imenso, tão monumental, reunindo 250 000 documentos, que fica difícil dizer que, por trás de tudo, há a intenção de controlar uma história. Pode ser que haja, mas não parece provável. Daí surge a indagação cuja resposta ninguém tem, pelo menos até agora: qual a intenção do WikiLeaks com tamanho vazamento? Qual o interesse em divulgar que os diplomatas americanos acham o primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, um político “fútil e vão?” Que a chanceler alemã Angela Merkel não “assume risco e é raramente criativa?” Ou que Nicolas Sarkozy é o “presidente francês mais pró-americano desde a II Guerra Mundial”, mas é “mercurial e autoritário?”

Julian Assange, nas poucas entrevistas que já deu, diz que sua intenção é fazer o bem, punir os corruptos e malfeitores, desvendar os segredos sujos de governos e corporações. Será? Desde que foi fundado, há quatro anos, o WikiLeaks já fez barulho antes, embora não tão audível como agora. Mostrou banqueiro suíço escondendo lucro de clientes em paraíso fiscal, lobista de laboratório farmacêutico manipulando dinheiro da Organização Mundial de Saúde, corporação jogando lixo tóxico na Costa do Marfim e adoecendo 100 000 pessoas. Neste ano, nas suas operações mais ousadas, o WikiLeaks divulgou 77 000 documentos secretos dos Estados Unidos sobre a guerra do Afeganistão e, mais tarde, quase 400 000 sobre a, guerra no Iraque. Assange diz que a próxima fornada de segredo, já devidamente coletada e guardada, será contra um grande banco - e especula-se que seja o Bank of America. Nas suas palavras, o próximo vazamento revelará um “ecossistema de corrupção”, já disse também que tem montanhas de segredos da indústria farmacêutica e de uma corporação da área de energia. Tudo obtido por meio eletrônico, com os conhecimentos que acumula desde os tempos de hacker na Austrália, quando usava o codinome Mendax - o enganador, em latim.

É certo que a motivação de Assange não é enriquecer. Se fosse, já teria embolsado fortunas vendendo os segredos que divulgou e poderia estar morando numa península exclusiva de Abu Dhabi com Rolls-Royce na garagem. Até a semana passada, ele se escondia por aí de um inimigo oculto. Pinta o cabelo totalmente branco, desde que teve uma traumática disputa com a ex-mulher pela guarda do filho - e diz que é para se disfarçar. Não tem endereço fixo, troca de celular a toda hora, não usa cartão de crédito. Em setembro, pegou um voo de Estocolmo para Berlim, quase vazio, mas seus três laptops, criptografados, sumiram misteriosamente. Na semana passada, Assange passou a se esconder de um inimigo conhecido. A Interpol expediu um mandado de prisão contra ele, a pedido da Justiça da Suécia, que quer ouvi-la sobre a acusação de estupro e assédio sexual contra duas suecas. Assange diz que teve relações consensuais com ambas e que a acusação não passa de uma campanha para sujar sua imagem e desacreditar seu trabalho. O último paradeiro conhecido de Assange era o sul da Inglaterra. Agora, ele sumiu.

São fantásticos esses tempos que vivemos: um australiano de 39 anos põe a diplomacia mundial de cabeça para baixo e depois desaparece, secretamente escondido em algum lugar, logo após mostrar que acabamos de entrar, querendo ou não, na era da megatransparência. A missão de Assange, segundo ele diz, é acabar com os segredos, de modo que cidadãos e consumidores saibam tudo o que se faz em seu nome. Com essa missão quixotesca, roboticamente irreal, Assange está, na verdade, mudando o modo como os segredos serão produzidos e armazenados. O governo americano já escalou um funcionário, Russel Travers, para examinar todo o episódio e encontrar alternativas para impedir vazamentos futuros. A indústria da segurança cibernética, que já florescia na Europa e nos Estados Unidos, tende a entrar num boom. Antes do mundo digital, jamais haveria um vazamento de 250 000 documentos e seus sabe-se lá quantos milhões de páginas. No mundo do papel, não há como capturar, copiar, transportar ou guardar tamanha montanha. Quando Daniel Ellsberg vazou os segredos do Vietnã, o estudo que divulgou tinha 1000 páginas. Um dos desafios era guardar tudo isso sem chamar atenção. Agora, 250 000 ou 400 000 documentos são ninharia.

Nessa escala, quase tudo é possível. Sabe-se que o embaixador americano no México gostaria de ocultar o verdadeiro poder territorial do narcotráfico no país, e que o ex-embaixador no Brasil acha que o submarino nuclear que a Marinha quer construir é um “elefante branco”. E os vazamentos, pequenos e grandes, inócuos ou devastadores, tendem a aumentar. Funcionários do WikiLeaks deixaram o site para fundar a sua própria versão. O objetivo, diz Julian Assange, é este mesmo: povoar o mundo de WikiLeaks. O australiano é considerado um gênio da computação. Já entrou antes nos arquivos do Departamento de Estado, quase foi preso sob 25 acusações, pagou multa de alguns milhares de dólares, e segue no que considera sua “missão”. Há funcionários que deixaram o WikiLeaks preocupados com o efeito que a condição de celebridade pode estar tendo na cabeça de Assange. O dono do WikiLeaks tem um comportamento meio imperial, já chamou seu grupo, não mais de quarenta pessoas, de “confederação de tolos” e disse, em tom de brincadeira, que tem um “complexo de Messias”. O certo é que, quase sozinho, ele está fazendo uma revolução.

O ministro se revela

O brasileiro que mais aparece nos telegramas diplomáticos divulgados até agora é o ministro da Defesa, Nelson Jobim, já confirmado para se manter no cargo no futuro governo. O ministro é mencionado em oito despachos, escritos entre janeiro de 2008 e novembro de 2009. Em todos, Jobim aparece fazendo o que não devia. Conta o que não era para contar, faz inconfidências que não deveria fazer e, quando analisa a estabilidade na América do Sul, dispara contra o alvo errado. Num telegrama do fim do ano passado, informa-se que, para Jobim, a grande ameaça de “instabilidade potencial” no continente é a Colômbia e que o então presidente, Álvaro Uribe, era “fonte primária das tensões andinas”. Em nenhum lugar Jobim aparece explicando por que raios o problema seria a Colômbia quando existe a Venezuela de Hugo Chávez. Uribe já entregou o poder ao sucessor. Chávez, em outro lote de telegramas, é chamado de “louco” e suas loucuras são tantas que, diz um diplomata francês, “nem o Brasil aguenta mais”.

Em conversa com Clifford Sobel, então embaixador em Brasília, Jobim contou que Evo Morales sofria de um tumor maligno no nariz e que o presidente Lula havia oferecido ao boliviano tratamento em um hospital em São Paulo. Em vários despachos, Jobim critica o Itamaraty e comenta suas disputas com colegas brasileiros. Diz que o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Guimarães, “odeia os Estados Unidos” e já fez “propostas bizarras” só para complicar as relações entre Brasília e Washington. Comenta que, na viagem que faria dali a dois meses aos Estados Unidos, gostaria de assinar um acordo de cooperação militar, mas está enfrentando “oposição intransigente” do Itamaraty, e acrescenta que não seria prudente comprar a briga agora. Talvez por tudo isso, Sobel escreveu que Jobim está entre os “líderes mais confiáveis do Brasil”, com a vantagem de ter uma qualidade “rara entre líderes” brasileiros: “reputação de integridade”. Em nota à imprensa, Jobim negou ter dito que Guimarães “odeia os Estados Unidos”. Disse que tratou Guimarães como um “homem que ama profundamente o Brasil”. Todo mundo acreditou.

Um vazamento extraordinário

O momento mais glorioso da era dos vazamentos controlados, agora enterrada com a divulgação dos 250 000 telegramas americanos, talvez tenha sido em julho de 1947. A revista Foreign Affairs, até hoje respeitada pelo seu poder de análise em política externa publicou um artigo assinado com um pseudônimo “X”. O artigo fazia uma longa análise sobre a União Soviética. Na época, Josef Stalin estava no poder em Moscou, a guerra tinha acabado havia apenas dois anos e os Estados Unidos não sabiam exatamente o que os soviéticos pensavam ou queriam. O “Artigo X”, como ficou conhecido, respondia a todas as perguntas. Com um texto elegante, o autor discorria sobre a história, a ideologia, as circunstâncias do poder soviético. Dizia que os líderes do Kremlin eram imunes ao raciocínio lógico e nada é os demoveria da ideia de que o socialismo é estava em permanente antagonismo com o capitalismo - e seria, sem dúvida, o vitorioso final da história. Portanto, concluía o artigo, os soviéticos jamais seriam parceiros confiáveis. Os Estados Unidos deveriam então ter uma política de permanente “contenção” do poder soviético.

O sucesso do vazamento foi estrondoso. A ideia era fazer com que a Casa Branca adotasse a política de contenção. Para tanto, vazou-se que a publicação do artigo fora autorizada pelo então secretário de Defesa, James Forrestal. Vazou-se, também, que o “X” era George Kennan, funcionário do governo americano e ex-ministro conselheiro da embaixada americana em Moscou. No ano anterior, Kennan havia escrito o que ficou conhecido como Longo Telegrama, informando Washington sobre a verdadeira natureza do poder soviético, que até então estava intrigando as autoridades americanas. Com o vazamento duplo, sobre a identidade de quem deu autorização e de quem escreveu, inevitavelmente interpretou-se que as análises expostas no “Artigo X” eram a expressão da verdadeira opinião do governo americano sobre o Kremlin. Não eram exatamente isso, mas acabaram sendo. A ideia da contenção foi adotada e pautou a política externa americana durante toda a Guerra Fria até o momento em que aconteceu o que o poder soviético nunca considerou - a derrota final, com a implosão dá URSS em 1991.

Fonte: REVISTA VEJA, via NOTIMP




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