|

Rio: Longe do fim









Carla Rodrigues.

O tráfico de drogas no Rio de Janeiro se estabeleceu em territórios vazios de poder institucional e cresceu como negócio de amplos horizontes. Estudo do economista Sérgio Ferreira Guimarães (Ibmec-RJ) estima que 16 mil pessoas têm atividade num mercado que movimenta entre R$ 300 milhões e R$ 600 milhões por ano.

A história desse poder paralelo teve, na semana passada, a mais simbólica e importante ruptura: a entrada das polícias civil e militar, com apoio do Exército e da Marinha, em partes antes inacessíveis de duas comunidades - Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão - onde, como em outras tantas, os traficantes exerciam controle praticamente absoluto sobre a população civil, mantida em regime de opressão num território protegido por barreiras à entrada de veículos policiais e obstáculos naturais da geografia escarpada.

O Estado impôs ali sua presença formal, numa sequência de ações de ocupação ilustrada pelo hasteamento da bandeira nacional no alto do Complexo do Alemão. Uma série de atentados ocorridos em vários pontos da cidade, com ateamento de fogo a ônibus e automóveis, provavelmente em represália à expulsão de traficantes das áreas onde se instalavam as UPPs, desencadeou a reação drástica do governo do Estado, que pediu o apoio de forças federais para desalojar traficantes em áreas antes não alcançadas - inclusive, com o uso de carros de assalto da Marinha.

Estruturadas a partir dos anos 1970 sob um modelo que combina controle dos presídios e dominação de território para suas atividades, as facções criminosas encontraram nas comunidades pobres cariocas, o ambiente adequado para montar seus cartéis, ocupando espaços nos quais as políticas públicas sempre foram raras ou ineficazes. "A verdade é que durante décadas o Estado não teve que prover a ordem social nas favelas, por conta do papel exercido pelo tráfico de drogas", afirma Benjamin Lessing, pesquisador da Universidade da Califórnia, com tese de doutorado sobre tráfico de drogas. Ele está em Bogotá, de onde conversou com o Valor sobre os acontecimentos da última semana. Seu trabalho como coordenador do Observatório Internacional de Violência Associada a Narcotráfico é levantar informações que permitam comparar o que acontece no Brasil, na Colômbia e no México.

A motivação do otimismo com que os cariocas consideram a possibilidade de derrota definitiva dos traficantes vem não só do ineditismo da ocupação, mas também da decisão do governo estadual e da prefeitura de somar e coordenar esforços e começar imediatamente a agir nas duas áreas recém-controladas.

Ciente do vazio institucional que pode pôr em risco a bem-sucedida operação policial, o secretário estadual de Ação Social e Direitos Humanos, economista Ricardo Henriques, pretende antecipar a instalação, no Complexo do Alemão, da Casa de Direito, projeto que tem por objetivo preencher o vácuo legal em que vivem as comunidades há tantos anos sob o poder do tráfico.

Aquelas são regiões superpovoadas, nas quais os serviços públicos básicos, de segurança, educação e saúde, nunca estiveram presentes de modo suficiente, como apontam indicadores sociais recém-levantados pelo movimento Rio Como Vamos. A taxa de abandono do ensino médio nas escolas do Complexo do Alemão é de 33% e a proporção de alunos com mais de dois anos de atraso chega a 87%. O lugar registra ainda a mais alta relação de homicídios entre a população jovem - são 84,89 para cada 100 mil jovens - e uma precária situação de saúde, com 41% de gestantes que não fizeram exame pré-natal suficiente, num cenário em que 22% das crianças nascidas são filhas de mães com menos de 19 anos.

O diagnóstico faz parte do conjunto de informações com que trabalha Ricardo Henriques, também coordenador do projeto da UPP social, que reúne todos os serviços de infraestrutura de responsabilidade do governo do Estado e da prefeitura nas áreas ocupadas pela polícia. Trata-se de concentrar todos os recursos disponíveis num verdadeiro "choque social", com união de esforços que abrange também o governo federal.

Busca-se, assim, evitar fragmentação de recursos e sobreposição de projetos, dois males históricos nas ações sociais em favelas. Henriques é um economista experiente, com anos de pesquisas em desigualdades sociais, que mantém o pé no chão quando se trata de saber os limites do que se pode oferecer: "É preciso sair da situação extraordinária em que vivem as pessoas no Alemão, por exemplo, para uma situação ordinária de presença de políticas públicas regulares e rotineiras."

É seu propósito fazer com que o conjunto de ações propostas não seja visto como uma panaceia, mas como iniciativas dotadas de três requisitos básicos: continuidade, planejamento e método. Esse trinômio tem sido buscado em processos de identificação das demandas específicas em cada área a ser trabalhada. Troca-se a visão generalista por diagnósticos mais precisos. "Nosso maior desafio é não empilhar programas, mas fazer com que o sistema ande", diz Henriques.

Para o Complexo do Alemão, o governo do Estado e a prefeitura anunciaram a realização de um conjunto de ações que vão da coleta de lixo até atendimento de saúde especializado em estresse pós-traumático. A antecipação da instalação da Casa de Direito também faz parte desse programa, que visa à implantação de referências institucionais na área.

Ricardo Henriques dirige sua atenção para alguns pontos relevantes de articulação entre violência e questões socioeconômicas. Censo feito no Complexo do Alemão mostrou que 90% das atividades econômicas locais estão na informalidade.

Como lembra o economista André Urani, sem integração social e econômica e sem dar fim à informalidade que rege a vida dessas populações que vivem em áreas dominadas pelo tráfico, dificilmente a ação policial, sozinha, vai dar conta do problema.

As pesquisas de Benjamin Lessing indicam as peculiaridades do perfil do tráfico no Rio de Janeiro como um obstáculo ao trabalho da polícia. São grandes operações de venda de drogas no varejo, concentradas, principalmente, sob o poder do Comando Vermelho (CV). Essa organização criminosa detém também o domínio da população carcerária, poder que cresce com a oferta de proteção e socialização aos pequenos criminosos.

No Rio de Janeiro, a estratégia do Comando Vermelho associa o domínio territorial das comunidades, com bloqueio do acesso da polícia, monopólio local no negócio da droga - é praticamente impossível que surja um concorrente em área já dominada - e uma relativa estabilidade no poder, já que, na maioria das vezes, os chefes do tráfico são sucedidos por representantes da mesma facção.

É um sistema mantido à custa de pesados investimentos em armas, mas também preservado por laços de relações entre traficantes e policiais que se deixam corromper. Essa convivência antiga propiciou, em tempos mais recentes, o surgimento das chamadas milícias, formadas por policiais e ex-policiais, que disputam territórios aos traficantes e instalam seus próprios sistemas de dominação das populações, com a imposição de venda de serviços os mais diversos - água encanada, gás para uso doméstico, televisão a cabo e acesso à internet, e proteção a comerciantes.

Para Rosiska Darcy de Oliveira, presidente do movimento Rio Como Vamos, o alvo das ações de governo deveriam ser os jovens, muitos dos quais nasceram e cresceram sob o domínio do tráfico e não conhecem outra ordem ou exemplo de autoridade.

Apesar das diferenças entre o Rio de Janeiro e Bogotá, o Rio Como Vamos surgiu inspirado no modelo colombiano, em que uma bem-sucedida experiência iniciada na capital transformou a cidade.

O Rio - Como Vamos batalha por criar uma nova cultura política na cidade, baseada em acompanhamento de indicadores, prestação de contas e apresentação de resultados. Rosiska afirma que pelo menos em um ponto o Rio de Janeiro precisa aprender com Bogotá: o restabelecimento da estima pela ordem. Na capital colombiana, uma série de ações e campanhas públicas ajudaram em um processo de reeducação pelo qual o carioca precisa passar. No Rio, observa Rosiska, o desapreço pela lei acabou se misturando e se confundindo com a cultura do "jeitinho carioca", esgarçando de tal forma o tecido social que o espaço público perdeu valor.

"Felizmente, aqui não se vive a tragédia que foi a Colômbia", afirma Rosiska. Otimista, ela acredita que a enxurrada de telefonemas para o Disque-Denúncia e a ampla colaboração da população com a polícia - como se vê desde o transcorrer das operações de ocupação da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão - sejam o mais sólido indício de que será possível "vertebrar" a sociedade carioca. "Até porque, o respeito à lei e à ordem é condição para a democracia."

A perspectiva de consolidação democrática virá, acredita Urani, a partir do enfrentamento de novas questões. Para ele, a primeira boa notícia é que, ao contrário do que aconteceu na Vila Cruzeiro em 2008 e no Complexo do Alemão em 2007, as forças policiais chegaram para ficar. O anúncio de que as Forças Armadas permanecerão nas áreas até a chegada das UPPs, dentro de aproximadamente um ano, é para o economista um motivo de otimismo. Urani defende outras ações que apontem na mesma direção, como o enfrentamento das milícias e a libertação de outras áreas dominadas pelo tráfico.

As milícias são a grande preocupação também de Lessing, que lembra a Medelín dos anos 1990, quando a cidade mais violenta do mundo era dominada por gangues de delinquentes e forças paramilitares muito parecidas com as milícias que já ocupam cerca de 100 das 800 favelas cariocas. "Medelín nos ensina que é muito perigoso para o Estado fazer qualquer tipo de acordo tácito com as milícias, que em geral tomam conta de áreas em que as forças policiais não podem entrar."

As milícias são mais difíceis de combater, por serem mais bem organizadas e terem maior capacidade de articulação política. Ao contrário dos traficantes, que jamais se elegeriam para cargos públicos nas câmaras municipais ou assembleias legislativas, os milicianos têm demonstrado, no Rio de Janeiro, como na Colômbia e no México, que estão protegidos por redes de relações políticas e eleitorais.

Lessing usa como exemplo o grupo Los Zetas, cuja origem é uma tropa de elite do Exército mexicano, com formação semelhante à do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que em determinado momento foi cooptada pelo Cartel do Golfo para tornar-se o braço armado e muito bem treinado do tráfico. "É como se todo o efetivo do Bope de repente migrasse para o crime."

É preciso tomar muito cuidado, adverte Lessing, para que, ao acirrar o enfrentamento com o narcotráfico, não se chegue, no Rio de Janeiro, a uma situação semelhante. Lessing afirma que nenhum país conseguiu acabar com o mercado de drogas, apesar dos resultados obtidos no combate à violência que lhe é associada. "Não sei se chegaremos ao fim da narcoviolência no Rio, mas na Colômbia, embora tenha acabado, não trouxe o fim do narcotráfico."

Por isso, quando o governo do Estado anuncia que vai dar combate sem trégua ao tráfico de drogas , Lessing se preocupa com o tipo de confronto que pode decorrer daí. Para ele, é perigosa a combinação entre repressão e corrupção, que pode levar a situações semelhantes às observadas na Colômbia e no México. "Temos que decidir que tráfico de drogas queremos ter", argumenta, partindo da constatação de que, se não é possível acabar com o tráfico, é necessário acabar com a violência, admitindo que o modelo territorial, que vigora no Rio há quase 30 anos, período durante o qual o que se viu foi uma corrida armamentista e uma escalada de violência, possa ser substituído por outras formas de distribuição de drogas.

Lessing alerta que, num primeiro momento do confronto, a violência pode aumentar. A captura dos chefes do tráfico pode desestruturar os mercados ilícitos, como aconteceu no México. Lá, com a prisão dos traficantes mais velhos e articuladores dos pactos tácitos de convivência, os sucessores, mais jovens, partiram para a radicalização da violência. Por isso, Lessing elogia o realismo do secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame: "Ele tem dito que a missão da polícia é desarmar o traficante, não acabar com o tráfico. É uma nova ótica".

Como não é possível acabar com o tráfico, será preciso decidir qual tráfico queremos ter, e partir para o combate à violência, diz pesquisador

Fonte: VALOR ECONÔMICO, via NOTIMP




Receba as Últimas Notícias por e-mail, RSS,
Twitter ou Facebook


Entre aqui o seu endereço de e-mail:

___

Assine o RSS feed

Siga-nos no e

Dúvidas? Clique aqui




◄ Compartilhe esta notícia!

Bookmark and Share






Publicidade






Recently Added

Recently Commented